O setor do calçado tem uma longa e rica história no território português, tendo vindo a estabelecer uma posição de extrema relevância no tecido empresarial português.
Este setor já esteve perante inúmeros desafios, tendo mostrado ao longo do tempo uma resiliência impressionante, o que lhe permite ter confiança na capacidade de ultrapassar futuros desafios.
O setor do calçado ainda se encontra em fase de recuperação devido à COVID-19, e o panorama macroeconómico atual não é de todo favorável, devido às consequências da invasão à Ucrânia, pressão sobre a taxa de inflação e preços da energia e matérias-primas. No entanto, as previsões para a performance do setor do calçado a nível global são otimistas, sendo estimado que o consumo mundial de calçado cresça 6% em 2022, de acordo com o último Business Conditions Survey.
Dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) revelam ainda que as empresas portuguesas do setor do calçado estão a demonstrar não só uma excelente capacidade de recuperação face aos desafios enfrentados, tendo estas exportado 505.241.194 euros em calçado no primeiro trimestre de 2022, o que corresponde ao terceiro melhor primeiro trimestre de sempre do setor.
O papel do setor do calçado em Portugal
A evolução do setor do calçado português ao longo das décadas e a sua capacidade de enfrentar momentos de crise e instabilidade tornaram-se um verdadeiro caso de estudo, sendo este setor, no qual inicialmente poucos depositavam esperança, uma fonte de prosperidade e relevância ao nível internacional para Portugal.
Desde a alteração do contexto português decorrente da revolução do 25 de abril de 1974 à entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia (CEE) em 1986, vários foram os ajustamentos que as empresas do setor do calçado tiveram de fazer de modo a manterem-se competitivas nos mercados nacional e internacional. Por exemplo, com a criação do euro em 1999, Portugal deixou de ter a capacidade de desvalorizar estrategicamente a sua moeda de modo a manter os produtos produzidos internamente competitivos, o que obrigou as empresas portuguesas a apostar na eficiência dos seus processos produtivos. Por outro lado, a adesão da China na Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001 e a adesão de 10 novos países na União Europeia (UE) em 2004 contribuíram para uma intensificação acentuada da concorrência no setor do calçado ao nível global.
O setor do calçado português conseguiu acompanhar esta intensificação da concorrência a nível global, tendo as suas exportações passado de 3,1 milhões de euros em 1975 para 1.500 milhões de euros em 2020, e o número de colaboradores de cerca de 15.000 pessoas para 41.864 pessoas. Por outro lado, enquanto antigamente o setor do calçado em Portugal se baseava em mão de obra barata e produtos low-cost, tem vindo a desenvolver-se em termos tecnológicos, tendo atualmente das empresas mais avançadas do mundo.
Este é um setor fulcral no que diz respeito à balança comercial portuguesa. Apesar de Portugal ser historicamente um importador líquido, a partir de 2012 começou a registar superávits sucessivos da balança comercial, tendência que foi interrompida pela pandemia COVID-19 (com défices comerciais de 3.876,4 e 5.569,4 milhões de euros em 2020 e 2021, respetivamente). O setor do calçado português é, assim, fundamental para contribuir para os superávits em momentos de prosperidade e atenuar os défices em momentos de dificuldade, visto que apresenta historicamente um saldo positivo.
Não só é este um setor marcante na economia portuguesa, como a presença das empresas portuguesas é marcante ao nível internacional, sendo Portugal o único país da UE com saldo positivo na balança comercial de calçado e similares.
O setor do calçado é ainda uma relevante fonte de emprego e valor acrescentado para Portugal, representando 6,3% do emprego e 3,4% do valor acrescentado em Portugal, de acordo com a Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e seus Sucedâneos (APICCAPS).
Características marcantes do setor português do calçado
De acordo com dados disponibilizados pelo Banco de Portugal, em 2020 existiam 1982 empresas portuguesas a atuar no setor do calçado, número que, entretanto, decresceu devido às consequências da pandemia COVID-19. Estas empresas empregavam 41.864 pessoas e registaram um volume de negócios de 1.879 milhões de euros.
Em 2020, apesar de as microempresas constituírem 56,26% do número de empresas portuguesas no setor do calçado, apenas representam 6,02% do volume de negócios. Por outro lado, as pequenas e médias empresas, que constituem 32,69% e 10,6% do número de empresas portuguesas no setor português do calçado, representam 52,22% do volume de negócios, respetivamente. As pequenas e médias empresas representam ainda 35,32% e 44,55% do número de pessoas ao serviço, enquanto as microempresas e as grandes empresas apenas representam 20,13% conjuntamente.
No que diz respeito à distribuição geográfica das exportações portuguesas de calçado, a Alemanha e a França destacam-se como os principais importadores em 2021, com importações de cerca de 389 e 247 milhões de euros, respetivamente. De seguida, encontram-se os Países Baixos, com importações de 247 milhões de euros, e Espanha, com importações de 129 milhões de euros.
De acordo com a APICCAPS, verifica-se uma forte concentração das empresas de calçado no Norte de Portugal, com mais de 90% das empresas a encontrarem-se a menos de 50km da cidade do Porto. A APICCAPS revela ainda que Portugal é especializado na produção e exportação de calçado de couro, e que tem verificado um forte crescimento nos segmentos de calçado têxtil, calçado impermeável e calçado de segurança.
O setor do calçado em 2022
O setor do calçado não ficou imune ao choque provocado pela pandemia COVID-19, que provocou uma forte quebra nos níveis de consumo e produção ao nível global na generalidade das indústrias. O setor português do calçado foi impactado por esta escassez de procura, tendo sofrido em 2020 uma quebra de 16,3% nas exportações face a 2019, registando assim cerca de 1.500 milhões de euros em exportações.
Em 2021, o setor do calçado entrou num processo de recuperação ao nível global, apesar de ainda estar longe dos valores pré-pandemia. Portugal apresentou uma recuperação extremamente positiva, crescendo o seu setor do calçado em 16%, o que corresponde ao dobro do ritmo da média mundial, refere a APICCAPS. Portugal consolidou ainda a sua posição como exportador, ocupando o nono lugar no que diz respeito às exportações de calçado em couro, assegurando 3,1% das exportações mundiais, e o quinto lugar no que diz respeito às exportações de calçado impermeável, com uma quota de mercado de 3,8%.
Este processo de recuperação global do volume de negócios do setor do calçado aos níveis pré-pandemia continua a verificar-se em 2022, sendo expectável que termine por completo em 2023.
O setor português do calçado tem registado números excelentes em 2022, tendo faturado 505.241.194 euros em exportações no primeiro trimestre de 2022, o que corresponde a um aumento de cerca de 25,5% face ao período homólogo. O mais impressionante acerca das exportações verificadas no primeiro trimestre é o facto de não constituírem apenas um aumento face aos valores registados durante a pandemia, mas também um aumento face ao período pré-pandemia, correspondendo as exportações portuguesas de calçado e similares no primeiro trimestre 2022 a um aumento de 6,2% face ao primeiro trimestre de 2019.
Nos meses de abril e maio (último mês para o qual o INE disponibiliza dados ao nível de 2022) também foram registados valores superiores de exportações do que nos períodos homólogos e 2019. Em abril, as exportações atingiram os 151.206.833 euros, o que constitui um aumento de 42,6% face ao período homólogo, e um aumento de 46,9% face a abril de 2019. Por outro lado, em maio, as exportações atingiram os 163.990.740 euros, o que constitui um aumento de 38,4% face ao período homólogo, e um aumento de 14,7% face a maio de 2019.
Sendo assim, a performance do setor português do calçado nos primeiros meses de 2022 parece indicar que este será um ano de prosperidade para o mesmo. No entanto, é possível que o contexto macroeconómico atual impacte negativamente a procura a nível global, nomeadamente ao nível do setor do calçado.
Os dados disponibilizados pelo INE parecem revelar que estes desafios globais a descrever de seguida já se fazem sentir nas exportações de calçado, visto que, apesar de o valor das exportações ter aumentado sucessivamente entre janeiro e março, ocorreu uma quebra de 29.928.763 euros entre março e abril. Apesar de se ter registado um acréscimo de 12.783.907 euros no valor das exportações entre abril e maio, não foi suficiente para compensar a quebra, pelo que as exportações em maio estão abaixo do nível registado em fevereiro (mas acima de janeiro). Esta aparente recuperação entre abril e maio não deve necessariamente ser interpretada como algo positivo, visto que é possível que os valores registados em abril e maio estejam “contaminados” devido ao efeito da crescente inflação (que provoca um aumento no valor nominal das exportações, ceteris paribus), e não se ter verificado uma recuperação real das exportações face à quebra registada entre março e abril.
Foi agora referido brevemente um dos desafios mais marcantes ao nível global, a crescente inflação, mas quais são os principais desafios do setor do calçado, e como é que o podem afetar negativamente?
Desafios atuais no setor do calçado
Numa altura em que se esperava que a atenuação da pandemia COVID-19 permitisse um clima calmo para os agentes económicos, tais como as famílias, empresas e governos, surgem novas fontes de preocupação e incerteza com capacidade de produzir efeitos bastante negativos em toda a economia.
O mais recente Business Conditions Survey, levado a cabo pela APICCAPS, procurou averiguar quais as atuais fontes de preocupação dos empresários portugueses do setor do calçado, assim como a sua previsão acerca da evolução do volume de negócios e dos preços.
A maioria dos inquiridos prevê um aumento moderado do volume de negócios no segundo semestre de 2022, e um aumento acentuado dos preços. Esta previsão do aumento acentuado dos preços deve-se ao forte aumento que se tem vindo a verificar nos preços das matérias-primas e energia.
Os inquiridos apontam a subida dos custos de produção decorrentes do aumento do preço da energia e das matérias-primas como a maior dificuldade que esperam sentir no desenrolar da sua atividade no segundo semestre de 2022. Ao contrário do verificado em períodos recentes, nomeadamente durante as fases mais intensas da pandemia COVID-19, a escassez de procura por calçado não é apontada como uma preocupação significativa
Esta pressão inflacionária está atualmente presente numa grande parte dos setores, e não é expectável que o setor do calçado consiga escapar. Tendo em conta o impacto da inflação sobre os salários reais das famílias, é possível que a redução da procura real também atinja o setor do calçado.
Outro desafio apontado pelos inquiridos diz respeito às tensões vividas entre a Rússia e a Ucrânia, devido ao seu impacto negativo sobre o Produto Interno Bruto (PIB) global, assim como a sua influência sobre o preço da comida e energia, assim como sobre a taxa de inflação, que caminha para níveis insustentáveis. Por outro lado, guerra é sinónimo de incerteza, pelo que é expectável que os mercados internacionais “esfriem”. Tendo em conta que as exportações de calçado para a Rússia e para a Ucrânia são pouco relevantes na carteira portuguesa, não se tem vindo a sentir um efeito significativo resultante da redução de exportações para estes países devido aos conflitos.
Por fim, problemas associados a recursos humanos e dificuldades financeiras são apontados como outros desafios a enfrentar no presente semestre pelos inquiridos.
Apesar dos desafios referidos, os inquiridos encontram-se confiantes na capacidade de o setor português de calçado enfrentar mais um desafio com sucesso, e provar mais uma vez que é um alicerce da economia portuguesa.
Oportunidades atuais no setor do calçado
Apesar de os últimos tempos terem sido marcados por desafios ao nível empresarial, vivemos em tempos entusiasmantes no que diz respeito às oportunidades de inovação e aumento de eficiência por parte das mesmas.
Tal como na generalidade dos setores, as empresas do setor do calçado encontram-se atualmente num caminho de transformação dos seus processos produtivos, de modo a torná-los mais sustentáveis. Neste sentido, as empresas do setor do calçado procuram minimizar o desperdício e os resíduos gerados durante os processos produtivos, e tornar os seus produtos o mais “verdes” possível, o que lhes permite simultaneamente registar aumentos de eficiência e contribuir para a preservação do meio ambiente.
As empresas portuguesas não são exceção, referindo a APICCAPS que o setor português do calçado investirá 140 milhões de euros na tentativa de se tornar uma referência internacional ao nível do desenvolvimento de soluções sustentáveis. A APICCAPS revela uma clara ambição do setor em fortificar a sua posição como exportador com base em conhecimento e inovação. Este investimento está dividido em dois projetos: o projeto Fábrica Ágil, Inteligente, Sustentável e Tecnológica (FAIST) e o projeto BioShoes4All.
O projeto FAIST, com um orçamento de perto de 60 milhões de euros, tem como objetivo aumentar o grau de especialização das empresas portuguesas em novas categorias de produtos, melhorando assim a capacidade de oferta portuguesa. O projeto passará por uma aposta em equipamentos de produção e tecnologias, e na qualificação da mão de obra local, de modo a serem criados processos produtivos fortemente automatizados.
Por outro lado, o projeto BioShoes4All, com um orçamento de perto de 140 milhões de euros, baseia-se em cinco pilares: biomateriais, calçado ecológico, economia circular, tecnologias e formação avançadas, e desenvolvimento. Este projeto tem como objetivo garantir que a produção nacional é resiliente, de modo a permitir uma posição favorável nos mercados internacionais, nos quais a inovação, diferenciação, qualidade dos produtos e capacidade de resposta são fulcrais para o sucesso.
Estes projetos de investimento são fundamentais visto que, nos dias de hoje, é fundamental as empresas garantirem que acompanham a transição climática e a crescente concorrência nos mercados internacionais, caso contrário estão a desperdiçar a oportunidade de maximização do seu valor de longo prazo.
Por fim, existe uma vontade por parte das empresas portuguesas no setor do calçado em intensificar a sua presença online, dada a crescente relevância do ecommerce.
Fontes consultadas:
- https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_indicadores&indOcorrCod=0005716&contexto=bd&selTab=tab2
- https://www.pordata.pt/Portugal/Balan%C3%A7a+comercial-2594
- https://www.worldfootwear.com/news/general-outlook-for-the-footwear-industry-is-optimistic-/7838.html
- https://www.apiccaps.pt/library/media_uploads/facts-numbers-2021.pdf
- https://bpstat.bportugal.pt/conteudos/publicacoes/1293
- https://visao.sapo.pt/atualidade/economia/2022-07-29-producao-e-exportacoes-mundiais-de-calcado-recuperam-86-e-74-em-2021/
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